Perdoe-me querida Lúcia por estas palavras encharcadas...
Estava eu deitada em minha alcova, a casa ainda dormia, quando bateram, rapidamente, a porta. Assustei-me pela hora. Bateram mais uma vez e neste momento me pareceram mais fortes, levantei-me num sobressalto imaginando que não desistiriam e temi por algo ruim...
Afastei vagarosamente a cortina, deixando apenas meus olhos, ainda baixos pelo sono, fitar os do meu insistente mensageiro.
- Perdoe-me senhorita pela hora! - exclamou o rapaz sem fitar-me, enquanto desembrulhava um envelope negro preso por uma fita minuciosamente armada em vermelho.
- Algo aconteceu? - interferi.
- Preciso lhe entregar isto e tamanha foi a urgência designada que não poderia deixar o amanhecer surgir...
Toquei o envelope e o tremor percorreu minha alma como outrora havia sentido. Lembra-se daquela tarde em que aquela dor, aquele sentimento que dilacerou meu peito? Senti o mesmo calafrio...
- De quem...?! - interroguei-o - não sei ao certo quanto tempo observei aquele negro envelope, nem se o que me chamara a atenção fora a escuridão ou aquela fita de sangue... Mas, fora o bastante para que o meu apressado mensageiro desaparecesse na escuridão...
Fechei a porta e enquanto procurava algum feixe ténue de luz dilacerei, delicadamente, o envelope. Parei imóvel próximo ao candelabro de bronze. Era uma carta... Ao ler as primeiras linhas atropeladas de tristeza e acusações ainda não me dei conta de meu misterioso remetente, entretanto, um apelido atribuído a mim revelava-me a autoria.
Ó Lúcia, amada Lúcia, aquelas palavras contidas ali não existiam em nenhuma língua falada sobre a terra, como ele pensara em tais vocábulos que para mim machucaram como um insulto? Tantos objetivos obscuros ele me atribuía...Procurei algo sólido em que pudesse apoiar não só o meu corpo febril, mas tudo que desabava...Em vão. Cai desfalecida. De um lado, a carta amassada e do outro uns versos de Whitman.
Ó vivendo sempre, sempre morrendo!
Os meus sepultamentos do passado e do presente,
Ó quando ando vigorosamente para adiante, material, visível,
[ imperioso como sempre;
Ó esse que fui por anos, agora morto (não me lamento, estou satisfeito),
Ó para desligar-me destes corpos meus, para os quais me volto,
[para olhar o lugar em que os joguei,
Passo adiante (Ó vivendo! Sempre vivendo) e deixo os corpos
[para trás.
Lembra-se como o conheci? Acho que nunca comentei. Na verdade pouco houveram de apresentações...Tínhamos outros afazeres e esperávamos pela mesma pessoa no momento. Era um bom homem e isto foi percebido imediatamente. Com o passar dos dias e nos caminhos que cruzávamos trocamos conversas simples, pelas circunstâncias.
Durante o nosso chá das quatro, naquele dia tempestuoso, o seu irmão, conhecido de ti querida Lúcia, chamou-me a estar em um local mais reservado. Não sei quais eram suas reais intenções em revelar-me sentimentos do nobre poeta que me fazia companhia em agradáveis caminhadas.
- Sabes, senhorita Aurélia, que estais por muitos desejada? - interrogou-me como se procurasse um interesse profundo de minha parte.
- Ah... Não sabia Hermano. E por quem? - respondi sorrindo, sem levar-lhe a sério, pois seu modo brincalhão tentava divertir as jovens senhoras sentadas, entre livros e um quente bule de chá.
Revelou-me sem pormenores. O primeiro não era de admirar, pois sua ousadia já era falada na corte ou nas casas de simples famílias. Entretanto, o segundo surpreendeu-me, e para não demonstrar minha inquietação continuei a sorrir...Com o decorrer dos dias seu interesse se tornou presente e após uma conversa franca revelei os meus sentimentos que por ventura não lhe agradariam. Ele declarou-se, e eu os neguei para não iludí-lo com promessas das quais eu não poderia cumprir.
- ... Então, me amas? - perguntei com os olhos úmidos escondidos na escuridão pela vergonha do que lhe causava.
- Não te preocupes! Eu nada espero de ti... - respondeu com uma voz rouca e falha.
Desaparecera por um tempo. Soube que havia viajado, repirar outros ares.
Passei por certos problemas de saúde e a sua presença, em retorno, confortou-me como se evaporasse minha culpa perante o seu sorriso e flores de melhora. Tão agraciada era a sua presença em minha família, como um filho e para mim um irmão.
Melhorei indiscutivelmente e voltamos as nossas caminhadas como antes, para mim o passado, os sentimentos estavam sendo esquecidos, levados por aquele vento fresco da primavera.
Fui sim, bela Lúcia, fui ingênua e mesquinha em permanecer junto, em tentar cultivar uma amizade que era impossível de manter-se erguida, por sentir-se bem em conversar tudo com ele, por amar a sua presença. Não percebi que para ele minhas palavras, meus sorrisos, meus gestos amistosos que eu compartilhava com todos que tinha apreço foram interpretados como sinais, nas entrelinhas como num verso de Bocage que cultua a natureza querendo permanecer no fogo...
Cavalgáva-mos como duas crianças pouco antes do anoitecer, conversávamos coisas supérfluas.
Meu confidente que transcrevia nossas tardes em sonetos.
Antes da chuva nos alcançar, ajudou-me a descer do cavalo branco, como um estrondo, apertou-me contra seu peito para amenizar o impacto de meus pequenos pés ao chão. Surpreendentemente nos aproximamos um pouco mais, o que jamais acontecera. Não sei ao certo se fora planejado, mas acredito que não pela índole de seu caráter. Aproximou-se como se quisesse beijar-me. Quase por instinto abaixei meu rosto, tão assustada e surpresa que uma só palavra não pronunciei. Corri para casa.
E me enchi de raiva e vontade de machucá-lo.Não sabes o quanto fiquei brava, por sua ousadia, mas o sentimento transformou-se em culpa. Culpa pela situação que eu causara. Eu sim, Lúcia. Eu devia ser machucada. Percebi o quanto era grave a minha amizade e o que ela causaria para ele, para mim e para meu noivo.
Chorei querida e me envergonho, pois eu, a mulher que desejei me tornar não choraria, não mais. Foi inevitável, pois posso ter sido boba e ingênua, Lúcia, mas dissimulada? Nunca. Repeli a sua presença dias após o acontecido, (não por ter tramado uma conquista e depois jogá-lo do seu pedestal,) se isso fora pensado. Mas, o repeli porque não mais sabia como agir, pois precisava afastar-me para o seu bem e o meu.
Eu não o amava como ele desejava, Lúcia, não como amo ao meu senhor, mas talvez ele encontrasse amor em minhas palavras ou em gestos... Eu não sei dizer. Percebi na sua tentativa de unir nossos corpos que o meu coração não era divisível. Caso fosse, eu teria me entregado. Porque isto não foi percebido por ele? Se me procuravas nas estrelinhas e para todos me tornei a dualidade em pessoa? Mas, isto já não me importa, que pensem.
Bem que me avisaste, em toda a sua plenitude, me avisaste doce Lúcia que a amizade não seria possível.
E eu?
Acreditava que sim.
Ainda desfalecida, em sonho, eu as vi. Eram três, sorriam e brindavam como mosqueteiras, parecia ter passado muitas décadas, pois eu não possuía a mesma face de outrora nem os olhos que brilhavam. Abaixo das espadas uma lápide.
- Aqui jaz um poeta!
Eu não sorria, Lúcia. Como eu poderia sorrir? Um belo rapaz sentado abaixo de uma Figueira me observava. Seguia-me com os olhos enquanto eu caminhava em encontro ao veículo. Até que pousou a vista em minha filha, sentada a fitá-lo no banco detrás. Era o seu filho, Lúcia. E como era parecido com o doce poeta que há tempos eu conhecera.
Despertei lentamente e a cor voltava a minha face. Amanhecera. O fim do ano se aproximava e tomaríamos rumos distintos à procura de uma sobra que amenize o calor do verão. Uma leve chuva caía...
Naquela manhã eu completara 21 anos e uma nova força me dava ânimo para levantar, afinal o casamento seria no inverno.
Abraços querida,
Aurélia.